Caderno Palavralém

Que sorte!

Até um acidente tem vários ângulos, bons e ruins, mas nem sempre enxergamos tudo. Crônica de Nelson Albuquerque Jr.

  • Data: 04/06/2020 10:06
  • Alterado: 04/06/2020 10:06
  • Autor: Redação ABCdoABC
  • Fonte: Nelson Albuquerque Jr.
Que sorte!

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Muvuca em frente ao hospital. Vi de longe a ambulância do SAMU e um pequeno contingente de curiosos. Bem na esquina. Atropelamento. Bem em frente ao hospital.

Admito que detesto essa gente curiosa que se empelota em torno de um acidentado. Principalmente quando estou dirigindo e isso empaca o trânsito.

Mas nesse dia eu estava a pé e, confesso, dei uma parada para ver o que havia ocorrido. Empelotei-me também. Não foi curiosidade por curiosidade, foi mais nobre, o dever cronista.

Se eu não parasse, não haveria essa crônica. Se eu não parasse, não teria ouvido o socorrista do SAMU exclamar: “Que sorte!” De imediato olhei para o acidentado, parecia inconsciente, todo arrebentado, e pensei: “Que sorte?”.

Tentei me aproximar para entender onde estava a boa ventura. Na maca, o rapaz com camisa do Palmeiras, olhos fechados, imobilizado até o pescoço, uma perna e um braço enfaixados, parecia uma múmia recém-extraída do sarcófago.

Pensei em algo como “sorte que ele se ralou todo, quebrou a perna, esfolou o braço, trincou uma costela, deslocou a coluna, mas ainda está respirando”. Ou seria “sorte que ele foi atropelado bem em frente ao hospital; por um caminhão, mas em frente ao hospital”. Ou seria “sorte que não rasgou a camisa alviverde”.

Não dava para chegar mais perto. O isolamento não permitia. E aquele bolinho de curiosos! Passou um motorista estressadinho buzinando e reclamando da lentidão no trânsito. Não vê que temos uma emergência aqui?

Imaginei também que, talvez, a felicidade do destino pudesse não ter sido do atropelado. O socorrista poderia achar-se ele próprio num dia de sorte. Tipo: “Que sorte ter sido bem em frente ao hospital, assim acabamos logo o serviço e encerro o expediente sem passar do meu horário”.

Me afastei da muvuca. Na verdade, foi quando colocaram o estropiado dentro da ambulância e fecharam a porta. Acabou a diversão. O bolinho foi se dissolvendo. A esquina voltava a ser só uma esquina. O trânsito passou a fluir melhor.

Eu, comigo, fiquei chateado pela atitude egoísta do cara do SAMU. Saí pensando. Foi egoísta, sim. Como pôde enxergar sorte naquela situação? Afinal, não era ele que estava todo arrebentado numa maca.

E o egoísmo daquele motorista apressado, buzinando? Pensando apenas em seus compromissos mundanos e ignorando que alguém ali lutava pela vida.

E a curiosidade mórbida – e egoísta – daqueles abelhudos em torno do acidente? Não estavam ali para ajudar. Estavam pelo sangue. Pois sempre há pessoas nas esquinas precisando de ajuda, mas nunca param.

E aquele cara pensando apenas em seu umbigo cronista? Mundo egoísta.

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  • Data: 04/06/2020 10:06
  • Alterado: 04/06/2020 10:06
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